segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A besta

Desencravei a unha do dedão do pé direito e agora ele lateja. Não, não desencravei, eu descolei uma lasca de pele rente à unha. Há a inflamação. O pus com a carne viva. A área quente pulsa e dói, muito. Mas quantas vezes já fiz isso? O prazer da dor. Dor e prazer são a mesma coisa, não é? Isso faz dias e ainda dói, parece que está pior; forma-se a ferida, mas ela custa a cicatrizar. Antes que sare, ela incha, deforma.

Há dias eu tenho vontade de gritar, de me exorcizar. Vontade de sair correndo e berrar o mais alto que eu puder. Descobri tanto sobre mim nos últimos tempos e, antes que eu me restabeleça, vou ruir. Não tem mais nada que eu não consiga ver de podre em tudo o que eu sou.

Eu, eu, eu, é tudo sobre mim, o tempo todo. Está em toda parte a minha sujeira, me lembrando quem é que manda.

Se eu me odeio tão profundamente, como posso permitir que alguém me ame? Como posso permitir que alguém me veja de um jeito diferente? A gente é o que é, eu aprendi. E eu, o que sou?

Queria que sentissem pena de mim no fundo, mas eu não sou digna de nada disso. Culpar alguém? Quem, senão a mim mesma? Sabe quem sou eu?

Pensando agora, pode ser que todos já me conheçam, só que nunca tinha me dado conta.

Culpa? Não sinto mais. A gente é o que é, eu aprendi, mas não é o que foi. Ainda assim, carrega a merda toda como se fosse um pedaço da gente.

Eu fui uma putinha, daquelas asquerosas que você comia o quanto quisesse e sempre que precisasse descarregar toda a porra que havia em você, era só me procurar, eu estava sempre de pernas abertas. Puta escrota, vagabunda barata, que fazia cara de poucos amigos, mas estava sempre pronta pra foder.

Que me fodessem de qualquer jeito, era o que eu queria, e depois chorava em casa, sozinha porque ninguém me amava. Depois de adulta, me enchi de recalques, negando todas as putarias que já fizera. Coisa de puta, quase coisa de puta que vira crente.

Eu acreditava em deus, mas agora que me mostraram que ele não existe, por que preciso fingir culpa por ser que eu sou? A gente tem de andar na linha, porque não existe deus, mas existem regras de civilidade, de convivência. Roubei namorados com os meus encantos de rameira, e em algum momento eles acreditaram que eu fosse uma ninfomaníaca; a vagabunda dos sonhos, com cara de mulher decente.

Me mostrava, então, fria, distante, com a libido de uma porta, enfiada dentro de uma concha, na qual mentalmente eu injuriava todos. Eu pedia para ser traída, depois pedia para não ser abandonada para que continuasse sendo traída. Ninguém me amava, não amava ninguém, mas não aceitava perder.

Quem mete no cu dos outros, em algum momento também toma, e eu tomei, ah, tomei gostoso...

Precisava do controle, da dominação, da paranoia que me lancinava e me fazia ter palpitações, dormir o dia inteiro, sonhar com coisas boas e ruins, e viver acordada coisas piores e inimagináveis. Eu queria o pacto, a certeza, mas não por amor, por posse, só para que pudesse continuar pisando os outros e comprovando que ninguém era decente, assim como eu não era.

Comprei pessoas também. Umas foram muito baratas. Vendiam-se por qualquer coisa, mas sempre queriam mais, e eu lhes dava o que queriam. Comprei conforto, proteção, companhia. Comprei o que o dinheiro podia comprar. Esperava devoção eterna, mas quem se rende ao dinheiro só funciona diante dele e os negócios sempre foram à parte.

Invejei pessoas, relações, coisas, atributos, inteligência, beleza, poder. Eu fui torpe, podre. Queria amor, ah, quantas vezes eu falei de amor, de comichões, de expectativas, tudo infundado e mentiroso. Nada disso existe, nem pode ser construído. É tudo um jogo de emoções efêmeras e baratas. Puro interesse. Meu e de todo mundo. Sempre se busca a troca, a via de duas mãos.

Quando se tem, acredita-se em amor. Quando não se tem, a culpa é sempre do outro que continua em busca do que não existe, assim como você. Alguns são falsamente preenchidos por essa sensação de amparo. Tudo mentira. Em breve aparecerá alguém melhor do que você jamais será, e adivinhem? O amor tão puro se vai.

Eu tô tão feliz, vou lembrar sempre daquela cara dizendo isso para mim. Você me ama? Amo. Você me ama? Amo. Mas vem cá, você me ama? Amo, caralho! Ah, tá, era só para saber, porque todo aquele papo de que eu te amava, passou. Sabe como é a vida, né? As coisas evanescem ainda mais rápido do que um peido.

Claro, evanescem fácil porque simplesmente não existem. Eu não acredito mais nisso. Sofro ainda. Por amor? Não, também não amava, só queria estar por cima, sempre por cima. Olhando por cima, pisando por cima, cuspindo por cima, gozando por cima.

Sempre o ego, respondendo a tudo. Antes de me purificar, preciso me esfacelar. Precisa não sobrar nada de bom, porque tudo é ruim.

Interesseira, dominadora, péssimas relações filiais, deslocamento infinito. Tentei fazer parte, sendo o que nunca fui. Já falei da vontade de sair gritando? Nem isso posso fazer, porque porra, pessoas normais não saem gritando pelas ruas, vomitando seus podres, tendo ataques nervosos, exaltando-se loucamente.

Pessoas normais não surtam, não quebram tudo, não enxergam que fazem parte da mesma escória que eu. Elas acumulam um monte de merda como eu, engolem cada pedacinho grotesco, ruminam, os pedaços descem, sobem, vão para um lado e para outro dentro de você, até que você regurgita tudo, em todo mundo. Até que você começa a fazer isso o tempo todo, com qualquer pessoa.

Até o momento em que qualquer mendigo da rua te olha com pena, por poder ver através de você o quão escroto e miserável você é.

Queria ser tomada de tapas, contida, babando, vociferando sem controle todas as minhas verdades absolutas. Vamos, me escutem! Eu sei do que estou falando! Minhas experiências foram as mais terríveis de todas, não porque foram de fato, mas porque foram as que eu tive a oportunidade de sentir.

A porra do inferno está por toda parte, mas o lugar onde ele mais queima é dentro de mim mesma.

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