quinta-feira, 21 de julho de 2011

Infância III

Naquela cidade, a menina aprendeu sobre o amor e sobre as perdas. Lá, ela enterrou um irmão que esperou por nove meses pra nascer; que nasceu num dia e morreu no outro. Ela nunca viu seu rostinho pequeno, apesar dele ter tido um nome. Ela nunca o conheceu, mas sentiu todo o pesar de sua mãe por tê-lo perdido.

Por vários dias, depois de ter voltado do hospital, a menina viu sua mãe no choro sofrido de quem perdeu uma cria; com os seios empedrados e com febre por não poder alimentar seu bebê. Ela via aquilo e não entendia a dimensão da dor, da separação depois da longa espera por ficar juntos, por conhecer de fato quem se carregou no ventre, pela convivência e aprendizado que nunca viriam.

Naquela cidade, a menina acompanhou o sofrimento dela tantas outras vezes, como quando ela perdeu o amigo tão querido. Ele era bonito, tinha os olhos claros, e ela guardava uma foto 3x4 em que ele parecia um jesus borrado. Ele era tão novo pra morrer, mas se foi em um acidente brutal de motocicleta. Nas estradas do interior, cheias de cascalho, ele derrapou. Chegou a ser levado pro hospital com vida, mas tinha perdido um braço, e dizem, que pela enorme ferida do braço amputado, podiam ver seu coração.

Não é assim que se esperava ver o coração de um rapaz tão bom e católico. Ele não acreditava no além, e várias vezes depois de sua morte, a mãe da menina sonhou com ele; remoía-se de culpa por ele ter partido brigado com ela, mas essa foi só uma das muitas culpas que ela carregou pelo tempo em que viveu naquele lugar.

A menina também sentia culpa. A primeira grande culpa que sentiu foi pela morte do pequeno cachorro de pelo encardido que tinham. Ele era adorado pelas pessoas da casa, mas um dia, a menina esqueceu o portão aberto, até que um homem gordo bateu à sua porta perguntando-lhe se o cachorrinho de pelos encaracolados não era dela, ao que ela respondeu "sim", e foi quando o homem disse que ele estava na esquina, morto. Havia sido atropelado. Ela correu, chorando. Viu-o mole, o sangue tingiu seu pelo de tapete, seu pequeno focinho preto, molhado e sujo de areia, não fungaria mais nada.

Foi a primeira vez que perdeu alguém e sentiu enorme culpa por isso. Fora a responsável pela morte de um ser e isso era terrível. A menina não tinha nem dez anos ainda, e já era responsável por tirar do convívio dos seus um dos seus.

Naquela cidade, a menina tivera incontáveis gatos e cachorros, que tiveram incontáveis ninhadas de animaizinhos que foram amados e queridos por todos os cantos das muitas casas em que ela morou. Depois de um tempo, um de seus quintais tornou-se um verdadeiro cemitério de animais. Os bichinhos morriam, atropelados ou por doenças que os faziam cagar sangue. O cheiro daquela merda, era o cheiro da morte, da doença que não tem volta, que aniquila. E ela chorava sobre eles, e depois seu irmão mais velho os enterrava no fundo do quintal, em meio às árvores e folhas caídas.

Logo a menina percebeu que quando a morte aparecia, seres humanos e animais eram iguais. O cachorro do vizinho, atropelado por um caminhão caçamba, e deixado no asfalto com seu crânio esmagado e seus lindos olhos azuis saltados das órbitas, era igual à criança atropelada pelo ônibus na frente da escola; igual à mulher que andava de bicicleta e que também fora atropelada por um ônibus.

As doenças matavam os bichos, assim como matavam as pessoas, os amigos de sua mãe, com caras assustadoramente cadavéricas, dentro de caixões baratos. Amigos morriam afogados, com seus buchos inchados e línguas pra fora, olhos saltados como os de sapos-boi que quacham sob as casas de palafita daquela cidade.

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