domingo, 17 de julho de 2011

Infância II

Naquela cidade, a menina cresceu ouvindo histórias de rasgas mortalhas que eram prenúncio da morte de pessoas próximas. Ouvia isso da avó de um vizinho. A velha negra era muito boa com as lendas que envolviam a floresta, o rio e os seres bizarros. Ela falava sobre visagens e sobre a cobra Sofia, uma cobra gigante que engoliria uma ilha que ficava ali por perto, caso a estátua de São José fosse arrancada de onde estava. E a estátua estava fincada no chão do rio, sobre uma pilastra, ao lado do trapiche que ficava na beira do rio.

Maré alta, maré baixa, todo mundo conseguia ver São José. E quando a maré estava baixa, tão baixa que se podia andar naquele chão, garotos se juntavam para jogar o que eles chamavam de futelama. Havia pedaços de madeira cravados no solo que faziam as vezes de traves, e todo mundo que jogava, saía de lá coberto da lama meio marrom, meio cinza.

Naquela cidade, a menina morou duas vezes no mesmo cortiço, e o cortiço ficava perto da catedral, e atrás dessa catedral, havia um prédio enorme que fora muito anos atrás um hospital psiquiátrico, e depois uma escola. Ele estava fechado e era administrado pela Igreja. Seu irmão, arteiro que era, uma vez entrou lá pra explorar o que meninos de doze anos exploram. Entrou não sabia como, junto com um vizinho, e fazendo barulhos lá dentro entre carteiras velhas, acabou chamando a atenção do padre. "Quem está aí? Não gosto de assombrações!". Ele saíra de lá depois de assustar o pobre pároco.

Juntavam-se em bando, sob a luz do poste que ficava no meio-fio daquela travessa, para conversar e brincar com toda a molecada que circundava o lugar. "Ô, Giiiilson!!!", chamava a mãe de um deles, e logo todas as mães berravam em coro, porque já estava na hora ir pra casa.

Ali também, havia uma casa de dois pisos, que estava em construção eterna, com uma montanha de areia na sua frente. Durante a semana, a menina e seus vizinhos pulavam e rolavam sobre aquela areia como cachorros que gostam de deixar seu cheiro nos lugares por onde passam. Nos fins de semana, com a construção fechada, pegavam enormes caixas de papelão e levavam para dentro da casa. Instalavam-se nelas e faziam de conta que estavam em uma nave espacial ou em um avião. As conversas eram de "gente grande", porque pilotar uma nave não era coisa pra crianças.

Ali, naquele monte de areia, não havia só areia, e também não havia só cocô de cachorro. Havia tábuas, com pregos virados para cima, e num deles, no meio da brincadeira, a menina fincou-lhe o pé. Aiii, o prego entrou inteiro, bem ao lado do dedão! Atravessou o chinelo de borracha, e daí só se via dor, sangue e areia; aquela sujeira típica de machucados infantis. Naquela ocasião não precisou de pontos, mas a anti-tetânica foi indispensável; o prego estava enferrujado, claro.

Naquela cidade estupidamente quente, em épocas de chuva, apareciam baratas cascudas, mas não eram simples baratas. Eram baratas do tamanho de mãos adultas, com cascos que pisados, não eram destroçados como os das baratinhas domésticas que se vêem por aí. Pior de tudo é que elas voavam... Pior ainda é que elas surgiam aos montes. Quando a menina acordava de manhã para ir para a escola, no caminho via duas grandes variedades de coisas pelo chão. Mangas e caroços de mangas, porque lá havia inúmeras mangueiras, e as baratas. Podiam ser varridas, pisadas. Tinha-se que escolher onde pisar, porque elas estavam por toda a parte; e mortas. A menina nunca soube porque elas amanheciam mortas, mas era assim que amanheciam. À noite voavam, picavam, aterrorizavam-na e, de manhã, estavam mortas. Eram como um pesadelo de verdade, que durante o dia podia ser visto, mas não fazia mal a ninguém.

E não é porque só fazia parte da imaginação dela, que não poderia lhe fazer mal, ou bem.

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